Charles Darwin já denunciava há muito que “não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta as mudanças”. Nesse sentido, malgrado as condições ora favoráveis, ora disruptivas, a Justiça Militar tem se mantido viva no sistema judiciário brasileiro há mais de 150 anos.
Várias mudanças ocorreram ao longo das décadas, mas uma em especial foi paulatinamente causando enorme desconforto ao atual e vetusto Código de Processo Penal Militar de 1969: a promulgação da Constituição de 1988! E não sem surpresa, afinal de contas fora incubado no auge do período ditatorial, o que presume uma dissincronia oceânica com as normas constitucionais.
De lá para cá, várias foram as manobras retóricas e véus de linguagem para “bancar” a vigência das normas castrenses em detrimento do devido processo legal constitucional. Sim, porque não se tratava mais, após 1988, de qualquer devido processo, este deveria ser filtrado e alinhado aos anseios constitucionais.
Não demorou muito para que todos percebessem que o marco inicial a qualquer paradigma que se estabelecesse deveria buscar luz constitucional e não nas normas infraconstitucionais, e assim, mesmo com resistências, várias mudanças foram talhando um novo processo penal militar.
A fim de buscar a imparcialidade, afinal de contas não basta ser, tem que parecer ser, a Justiça Militar passou a ser cada vez mais acompanhada por civis em sua composição. E não se trata de somente destacar o papel do juiz-presidente nos Conselhos Permanente de Justiça, ou ainda da competência monocrática do juiz federal militar.
Destaco aqui o importante crescimento e solidificação do Ministério Publico Militar ou do Ministério Publico Militar dos estados, ambos integrados por membros aprovados em concurso público e detentores de cargo de natureza civil. E o que falar da defesa nesse ponto?! Apesar de majoritariamente serem exercidas pela Defensoria Pública da União, nos estados têm ganhado cada vez mais destaque as Defensorias Públicas estaduais.
É justamente pela inserção desses cargos de natureza civil que se torna forçoso concluir, por exemplo, pela (im)parcialidade da justiça castrense, argumento reiteradamente invocado para diminuí-la. É certo que há incompatibilidades, e, por vezes, devaneios entre justiça e moral militar. Mas sobre “o moral”, a Justiça comum também não está incólume.
Segurança jurídica
Um dos problemas que foram solucionados ao longo dos anos, a título de exemplo, foi a efetivação do interrogatório do réu ao final da instrução, regra do artigo 400 do CPP (alteração introduzida pela Lei nº 11.719/08), que prevaleceu a previsão do 302 CPPM no julgamento do HC 127900/AM.
Nos fundamentos do julgamento sob relatoria do ministro Dias Toffoli, além de prestigiar e dar efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV), e portanto ao próprio sistema acusatório, buscou o tribunal prover segurança jurídica aos demais casos penais militares, dando à referida decisão não apenas um caráter facultativo, mas tornando o precedente de observância obrigatória.
E olha só! Afastou-se uma norma especial diante da regra comum, mas que adere melhor à Constituição. Isso desmente crenças e mitos que o critério da especialidade é o critério balizador para todos os paradigmas.
E agora, mais recentemente, no mesmo sentido julgou a 2ª Turma do STF, que por meio do RHC nº 142.608/SP, em modulação de efeitos, fixou a seguinte tese:
(…) O escopo de se conferir maior efetividade aos preceitos constitucionais da Constituição, notadamente os do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), cabe ser invocado como justificativa para a aplicação dos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal ao processo penal militar, sendo certo, ademais, que, em detrimento do princípio da especialidade, o Supremo Tribunal Federal tem assentado a prevalência das normas contidas no CPP em feitos criminais de sua competência originária, os quais, como se sabe, são regidos pela Lei nº 8.038/90.
Sistema acusatório
O julgado, ao reconhecer ser mais benéfico à defesa a apresentação da referida peça processual, modulando os efeitos para observância dos demais processos penais militares, ressalvou a possibilidade que a defesa apresente a referida peça no momento oportuno.
Dessa forma: “modulação da decisão, nos termos do voto médio, para que, a partir da publicação da ata deste julgamento, o rito dos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal seja aplicado aos processos penais militares cuja instrução não tenha se iniciado, ressalvada a hipótese em que a parte tenha requerido expressamente a concessão de oportunidade para apresentação da resposta à acusação no momento oportuno”.
E de fato “vingou a tese”. Eis que mais recentemente, por meio do HC 237395 / RJ, agora de forma monocrática, sob relatoria da ministra Cármem Lúcia, foi determinado à Auditoria da Justiça Militar do Rio de Janeiro a observância dos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal Militar.
Pois bem, duas conclusões apressadas sobressaem desde logo. A primeira é que soa no mínimo pueril críticas vazias no campo da (im)parcialidade nos julgamentos, seja civis ou militares, à medida que as instituições, não apenas o por meio do STF, têm assegurado a compatibilização ao devido processo substancial. Além disso, também não é razoável imputar à Justiça Militar a torpeza do legislativo em tratar da matéria, com uma profunda repaginação da Justiça Militar tomando como preceito fundamental o sistema acusatório quisto pela Constituição.
Não raramente surge o discurso que “não é momento político adequado”. E quando se fala em política, os antropólogos sabem que são apurados no discurso. Disse o antropólogo Luiz Eduardo Soares certa vez, num dos seus escritos sobre segurança pública: “se você não quer resolver um problema, defina-o de um modo muito complicado e distante de seu poder de intervenção. Se a gente faz assim, pronto: o problema vira um embrulho depositado em algum futuro distante”. O ponto futuro chegou!
Fonte: https://www.conjur.com.br/